Livro mostra que o “olhado” e o “quebranto” são tratados com rezas há mais de 2.000 anos

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Entretenimento

31 de julho de 2023 às 09h54

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No sertão da Bahia, povoado de Olhos D'Água, município de Tucano, Dona Florência de Jesus, na segunda década do nosso século XXI, rezava quem a procurava com “olhado”, “quebranto” e principalmente o “mal do ar”, capaz, segundo a sertaneja, de provocar congestão, dormências, dor de cabeça e outros problemas. Dona Florência (e outros rezadores) é herdeira de uma tradição que remonta a Antiguidade.

Nas “Cartas Paulinas” do Novo Testamento, São Paulo se referia como uma tradição de sua época os perigos existentes no ar onde habitavam os “espíritos do mal” a espalhar seus malefícios nas pessoas. Outras moléstias como o “cobreiro” e a “erisipela” já eram conhecidas e tratadas por assírios e egípcios mil anos antes de Cristo. Mas, ainda hoje é possível encontrar benzedores no Brasil que se dizem capazes de livrar as pessoas desses problemas.

O livro “Com dois te botaram/com três eu te tiro - Um estudo sobre religiosidade popular, suas rezas, benditos e excelências”, de Helenita Monte de Hollanda e Biaggio Talento, procura identificar no mundo contemporâneo as reminiscências da prática milenar das benzeduras dentro da “medicina popular” que surgiu na Antiguidade, absorveu e adaptou rezas no Cristianismo, foi tolerada num período da Idade Média; e num outro - que se estendeu até a Idade Moderna - confundida com bruxaria.

O início da pesquisa que resultou no livro foi a coleta de informações a campo feito por Helenita, potiguar, médica de formação, psicanalista e pesquisadora da cultura popular brasileira, autora do livro “Como diz o ditado...”. As entrevistas com rezadoras e rezadores ganharam impulso quando ela trabalhou como médica da família em cinco municípios baianos: Mucugê, na Chapada Diamantina, Xique-Xique, na região do Rio São Francisco, Tucano, no sertão, Maragogipe e São Félix, no Recôncavo baiano. Primeiro anotava tudo e registrava com um gravador cassete.

Depois passou a gravar as entrevistas com um Ipad. Ao longo de dois anos (2011 e 2012) trabalhando e morando nessas cidades, acumulou um bom acervo de histórias, lendas, benzeduras, rezas, benditos e excelências. Ao conhecer de perto a vida e a religiosidade do sertanejo foi possível penetrar um pouco na sua alma.

A pesquisa que seria usada na produção de livro, abriu espaço antes do material escrito, para que ela e o companheiro, o jornalista baiano Biaggio Talento, criassem o Canal Cultura Popular Brasileira no You Tube, (www.youtube.com/c/CulturaPopularBrasileira) no qual parte dessa pesquisa foi transformada em vídeos com o objetivo, não só divulgar, mas preservar essa rica vertente da cultura popular brasileira. O canal é um sucesso. Alcançou mais de 3,7 milhões de visualizações até junho de 2023. E, o mais importante, atraiu uma nova geração de rezadores e rezadoras a mostrar as rezas, benditos e excelências que conhecem. Com isso, a pesquisa se expandiu presencialmente e de forma virtual a vários estados além da Bahia: Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí de onde benzedores e benzedoras enviaram suas contribuições.

“A astrolatria é um dos primeiros rituais das tribos primitivas do mundo. E os cultos à Lua e ao Sol, se destacavam nesse período em que os humanos começavam a conhecer os astros. É incrível que um culto milenar de povos tão distantes esteja presente no Brasil do século XXI”, diz Helenita, citando um dos mais afamados rezadores que conheceu em Tucano-BA, em 2012, Pedro Santinho. “Entre suas rezas incluía o Sol e a Lua para curar a bicheira nos animais”. Outra, Veneranda Ferreira de Souza, de Mucugê-BA, tirava "friage" com ajuda dos astros: “Deus é o Sol, Deus é a Lua da melhor claridade, de sereno e Sol da melhor afinidade. Eu rezo com o poder de Deus e da Virgem Maria”.

O tempo, os animais, os elementos da natureza. Tudo pode ser “controlado” pelas benzeduras ou encantamentos. O livro cita, entre outras, uma fórmula para se apagar incêndios recolhida na década de 1940 na cidade paulista de São Luiz de Paraitinga. Pega-se um tição do fogo de casa e assopra até surgir labareda fazendo com que a chama entorte para o lado do incêndio na mata. O rezador garantia que os dois fogos se encontravam e o de fora se extinguia. A explicação era de que “o fogo da casa é batizado, por isso acaba com o outro que é pagão”.

Para Talento magia, religião e ciência tem convivido ao longo da história e permanecem trilhando vias paralelas até os dias de hoje. “Como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, magia e ciência são modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos. A ciência acerta mais que a magia na medida que esta às vezes também tem êxito. Por outro lado, a ciência pode falhar. Deve ser por isso que alguns astronautas antes de embarcar num foguete para o espaço, realizam rituais supersticiosos”.

A “Reza para talhar sangue” também conhecido como “Tomar o sangue de palavra” é exemplo de uma sobrevivência que dura mais de 300 anos. Os pesquisadores colheram com o rezador Pedro Santinho, em 2012. Posteriormente, encontraram versão muito semelhante, em latim, da mesma reza citada em livro do século XVIII como revelada por um feiticeiro julgado pela Inquisição em Portugal.

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